CONVERSANDO SOBRE ESCLEROSE SISTÊMICA
Dra, qual a diferença entre esclerose sistêmica e esclerodermia?
O termo esclerodermia vem do grego, onde skleros quer dizer duro e dermis: pele, ou seja, “pele dura”. As primeiras descrições sugestivas desta doença que levam ao endurecimento da pele são do tempo de Hipocrates, mas foi somente no século XVIII que ela foi melhor descrita. Inicialmente, acreditava-se que aquela ‘nova doença’ acometia somente a pele, no entanto, estudos realizados após a década de 20 demonstraram que havia uma forma sistêmica da doença, onde os órgãos internos eram também acometidos.
Desta forma, utiliza-se o termo esclerodermia para se referir aos casos onde só há o endurecimento da pele sem acometimento de órgãos internos e o termo esclerose sistêmica para aqueles onde, além do acometimento da pele há envolvimento visceral. Outra forma da esclerose sistêmica foi descrita a partir das observações de estudos posteriores: a esclerose sistêmica ‘sine escleroderma’, um quadro no qual se vê alterações viscerais típicas da esclerose sistêmica, mas sem o espessamento da pele.
Vale lembrar que esclerose sistêmica não tem nada a ver com esclerose múltipla, esta é ultima é uma doença neurológica, bastante diferente da doença reumática que será descrita nesta série de posts.
A esclerose sistêmica é uma doença rara?
Sim, a esclerose sistêmica é um reumatismo pouco freqüente, mas encontrada em todo o mundo, sem uma predileção por raça- em alguns países ela acomete mais os negros, em outros mais os brancos.
Alguns estudos de prevalência realizados em outros países estimaram sua freqüência entre 30 e 290 casos por um milhão de habitantes. No Brasil, ainda não dispomos de dados epidemiológicos precisos sobre a esclerose sistêmica.
Habitualmente, a esclerose sistêmica se manifesta entre a terceira e sexta década de vida, sendo rara em crianças e adolescentes. Ela é mais comum em mulheres do que em homens. Quando analisamos as faixas etárias mais jovens, especialmente do período fértil da vida da mulher, a proporção entre mulheres e homens pode chegar a de 15 mulheres para cada homem. No entanto, após os 50 anos, esta proporção pode se reduzir para duas mulheres para cada homem com esclerose sistêmica.
O que causa a esclerose sistêmica? Ela também é uma doença auto-imune?
Muita pesquisa tem sido realizada para esclarecer a forma como a esclerose sistêmica se desenvolve. Vários fatores têm sido implicados no desenvolvimento desta doença reumática, de maneira que não se pode atribuir ‘sua causa’ a um único fator.
Acredita-se que a esclerose sistêmica surja quando indivíduos geneticamente predispostos são expostos a determinados fatores ambientais que deflagram alterações imunológicas conduzindo a produção de auto-anticorpos, inflamação, funcionamento alterado dos vasos sanguíneos e fibrose de órgãos. O fato de a esclerose sistêmica ser mais comum em mulheres levou a elaboração da hipótese de fatores hormonais estarem envolvidos neste processo, sendo este ponto também objeto de estudo em pesquisas.
Dentre os fatores ambientais associados com a esclerose sistêmica em investigação estão: solventes orgânicos (tolueno, benzeno, cloreto de polivinil, tricloroetileno e outros), a sílica e alguns agentes infecciosos, especialmente virais (Epstein Baar vírus, Parvovírus e Citomegalovírus). O uso de próteses mamárias de silicone foi associado ao surgimento de esclerose sistêmica no fim do século XX, no entanto, estudos posteriores não confirmaram a associação entre o surgimento da esclerose sistêmica com a colocação de próteses de silicone.
Por ser uma doença rara, existe uma maior dificuldade em se realizar estudos científicos sobre esclerose sistêmica, o que torna importante o trabalho multidisciplinar em diferentes centros pesquisa. De forma colaborativa e com o desenvolvimento de parcerias dentro e fora das suas instituições, muitos pesquisadores têm se esforçado para superar estas dificuldades e propiciar um melhor entendimento sobre a doença e o desenvolvimento de novas opções terapêuticas para promover melhor qualidade de vida aos pacientes com esclerose sistêmica.
Dr(a), explique melhor como é este espessamento da pele na esclerose sistêmica...
No começo da esclerose sistêmica, observa-se um inchaço difuso nas mãos e nos pés, que pode se estender para a pele dos antebraços e pernas até o restante do corpo. Com o tempo, este edema vai regredindo e o endurecimento da pele se inicia, tornando este órgão espessado, endurecido, ‘não-pregueável’, podendo se tornar aderido as estruturas abaixo dele. O espessamento cutâneo na esclerose sistêmica ocorre devido a uma descontrole nas células que habitualmente produzem o colágeno da pele. Estas células, conhecidas como fibroblastos, passam a produzir uma quantidade excessiva de colágeno, o que, por sua vez, leva a fibrose.
Algumas vezes, o acometimento da pele é restrito a face e às extremidades além dos cotovelos e joelhos, sendo estes quadros classificados como esclerose sistêmica limitada; em outras ocasiões são também acometidas a pele dos braços, coxas, tronco e abdome, o que caracteriza os quadros de esclerose sistêmica difusa. Na literatura médica, há registros de melhora espontânea da pele com o passar dos anos, com redução do grau de espessamento da pele e da extensão da área acometida.
Ao longo da evolução da esclerose sistêmica podem acontecer coceira e ressecamento da pele, alterações na fisionomia (ex: afilamento dos lábios e nariz, redução de rugas, redução da abertura da boca), diminuição de pêlos, surgimento de manchas na pele (áreas mais escuras ou mesmo sem pigmentação), de áreas com dilatação de pequenos vasos sanguíneos chamadas de telangiectasias ou com acúmulo de depósito de cristais de cálcio ou hidroxiapatita. Estas últimas podem causar desconforto por restringir movimentos quando localizadas próximas a articulações ou quando se abrem e formam feridas.
Dra, além do espessamento da pele, qual outro sintoma chama a atenção na esclerose sistêmica?
Um dos sintomas mais comuns na esclerose sistêmica é o Fenômeno de Raynaud. Ele pode ser observado anos antes do início do espessamento da pele, estando presente em praticamente 100% dos casos.
O Fenômeno de Raynaud pode ser observado nas mãos, pés, orelhas e nariz; ele se caracteriza por uma resposta exagerada dos vasos sanguíneos a exposição a temperaturas mais baixas ou estresse emocional. Num primeiro momento, ocorre uma redução do fluxo sanguíneo pelo espasmo dos vasos superficiais, que pode ser percebido como uma palidez. Na seqüência, pelo consumo do oxigênio do sangue parado, observa-se um ‘arroxeamento’ (cianose), seguido de uma vermelhidão causada pelo restabelecimento do fluxo sanguíneo. Quando as fases de palidez e cianose são muito intensas e prolongadas, pode ocorrer a formação de úlceras e, em casos extremos, até gangrena dos locais acometidos.
O Fenômeno de Raynaud não é exclusivo da esclerose sistêmica. Ele pode ser observado em outras doenças reumáticas auto-imunes, como o lúpus eritematoso sistêmico e Síndrome de Sjögren, mas também em outras doenças vasculares, metabólicas ou como conseqüência do uso de alguns medicamentos (descongestionantes, anfetaminas e quimoterápicos). E em alguns casos, não há nenhuma destas condições associadas e o Fenômeno de Raynaud é classificado como primário. Diante destas considerações, quando houver suspeita de Fenômeno de Raynaud vale a pena procurar auxílio médico para realizar uma avaliação clínica mais detalhada.
Dra, quais são as outras manifestações de esclerose sistêmica além da pele e do Fenômeno de Raynaud?
Dores nas articulações, com ou sem edema das mesmas, são comuns. Devido ao espessamento da pele com adesão desta as estruturas subjacentes, podem surgir encurtamentos de tendões, contraturas articulares, com conseqüente perda de massa muscular e redução de força. Em alguns casos, pode haver uma inflamação muscular leve.
O acometimento do trato gastrintestinal é a manifestação visceral mais comum. Em cerca de 90% dos pacientes há um retardo no esvaziamento do esôfago, o que causa dificuldade para deglutir alimentos, dor e regurgitação em mais da metade dos casos, sendo também comuns azia, queimação e tosse seca como conseqüência de refluxo gastro-esofágico. Também pode surgir queixa de empachamento quando o estomago é comprometido. Se houver redução da motilidade do intestino associada a um desequilíbrio na microbiota intestinal é possível uma alteração de hábito intestinal (diarréia alternada com constipação), má absorção de nutrientes e desnutrição.
Nos pulmões pode ocorrer fibrose pulmonar como conseqüência da inflamação que acomete as pequenas unidades onde ocorre a oxigenação do sangue. Embora seja observada em mais da metade dos pacientes com esclerose sistêmica, a extensão deste acometimento é variável, o que determina a sintomatologia mais ou menos expressiva de falta de ar e tosse seca. Quando a circulação pulmonar é comprometida, de forma isolada ou associada à fibrose pulmonar, acontece a hipertensão pulmonar. A elevação da pressão nos vasos pulmonares diminui a oxigenação do sangue causando falta de ar aos esforços; na medida em que a pressão se eleva a níveis mais altos, o coração fica sobrecarregado, causando edema de membros inferiores e acentuação da falta de ar.
O envolvimento do coração, como alteração no ritmo cardíaco, derrame pericárdico, pericardite e miocardite podem ser observados em exames, porém, são sintomáticos em menos da metade dos casos.
O acometimento renal na esclerose sistêmica, conhecido como crise renal esclerodérmica, caracteriza-se por hipertensão arterial de início súbito, associado à perda rápida da função renal, levando a várias alterações metabólicas e circulatórias. Embora seja um quadro grave, a crise renal é incomum, ocorrendo em 20-25% dos casos de comprometimento difuso da pele com menos de 5 anos de evolução da doença. Além disso, desde a descoberta de um grupo específico de antihipertensivos (os inibidores da enzima conversora da angiotensina) utilizados no tratamento desta manifestação, o prognóstico da crise renal esclerodérmica melhorou significativamente.
Quanto ao sistema nervoso, as neuropatias periféricas podem ocorrer em 5-15% dos casos, sendo muito raro o comprometimento do sistema nervoso central.
E o diagnóstico? Como sei que tenho esclerose sistêmica?
O diagnóstico de esclerose sistêmica é feito a partir de um conjunto de sinais e sintomas observados na história clínica, exame físico e exames complementares. Chama a atenção a presença de Fenômeno de Raynaud em indivíduos jovens associado a sintomas de fadiga, dor articular e muscular, com inchaço nas mãos e/ou pés e alteração da elasticidade da pele. Vale lembrar que o Fenômeno de Raynaud pode estar presente em outras doenças, não sendo uma manifestação exclusiva da esclerose sistêmica E também pode aparecer sozinho, sem ter relação com doença alguma. Sendo assim, ressalta-se a importância da análise de todo o quadro clínico para se definir a estratégia de diagnóstico.
Um exame útil, simples e não invasivo para a investigação de casos suspeitos de esclerose sistêmica é a capilaroscopia periungueal. Neste exame, um profissional treinado na técnica avalia o padrão dos pequenos vasos sanguíneos das cutículas das unhas das mãos ao microscópio. Quando o Fenômeno de Raynaud é secundário a alguma doença reumática auto-imune, podem surgir áreas com ‘micro-sangramento’ e outras em que os pequenos vasos sanguíneos se tronam deformados ou até desaparecem, configurando um padrão conhecido como SD, observado em mais 90% dos casos de esclerose sistêmica.
Exames de sangue podem revelar: anemia no hemograma, elevação de provas de inflamação (VHS- velocidade de hemossedimentação e PCR- proteína C reativa) e complemento normal. A pesquisa do FAN (fator antinuclear) é positiva em mais de 60% dos casos, chegando a 98% em alguns estudos. Alguns auto-anticorpos considerados como mais específicos para esclerose sistêmica, como o anti-centrômero e/ou o anti-Scl70, devem ser incluídos na investigação diante de um resultado de FAN positivo.
Para a avaliação de acometimento visceral, em especial do esôfago, pulmões e coração, fazem parte da investigação: endoscopia digestiva alta, prova de função pulmonar/ espirometria, difusão de CO, tomografia computadorizada do tórax e ecodopplercardiograma.
Em situações especiais, podem ser necessários outros exames para melhor avaliação da extensão do acometimento do trato gastrintestinal, pulmonar, cardíaco, renal e neurológico, como manometria de esôfago, PHmetria esofágica de 24h, exame contrastado do trato digestivo, tomografia de abdome, holter 24h, cintilografia miocárdica, cateterismo, exames de urina, eletroneuromiografia e ressonância nuclear magnética.
Alguns destes exames são repetidos ao longo do acompanhamento com a finalidade de detectar precocemente o acometimento pulmonar (fibrose pulmonar e hipertensão pulmonar) a fim de se possibilitar uma intervenção terapêutica com maiores chances de sucesso. Pois, muitas vezes, quando os sintomas se tornam mais significativos a fibrose pulmonar e/ ou a hipertensão pulmonar já estão em estágios mais avançados, quando a possibilidade de uma reposta adequada ao tratamento é menor. A estratégia para o acompanhamento deve ser individualizada conforme a extensão do acometimento da pele e tempo de doença.
Diante de tantas manifestações, como é feito o tratamento da esclerose sistêmica?
A pele merece cuidados especiais com uso de produtos de higiene hipoalergênicos, banhos com água morna e rápidos e uso regular de bons hidratantes. No caso de coceira na pele, que não melhore com estes cuidados, pode ser necessário o uso de loções específicas para aliviá-la e até mesmo de antialérgicos. O uso de cosméticos pode ser uma alternativa para os incômodos causados pelas manchas na pele e telangiectasias. Habitualmente, não se indica a remoção cirúrgica dos depósitos de cálcio na pele, somente quando estes se associam a incapacidade. Estas áreas de depósitos de cálcio podem evoluir com sinais de inflamação (calor e vermelhidão) e drenar espontaneamente o conteúdo cálcio para a superfície da pele, nesta situação, analgésicos e/ou antiinflamatórios são úteis para aliviar o desconforto, mas é preciso atentar para a possibilidade de infecção local associada e necessidade de introduzir de antibióticos ao tratamento.
Uma medida de cuidado relevante é aprender a controlar e evitar os fatores que desencadeiam o Fenômeno de Raynaud, como o frio, estresse emocional e alguns medicamentos. Estar bem agasalhado no inverno é fundamental, mas também é preciso estar preparado para as oscilações de temperatura ao longo do dia no outono e inverno, bem como nos dias quentes quando se sabe que estará exposto à ambientes frios com ar condicionado. O Fenômeno de Raynaud mal controlado pode favorecer o surgimento das úlceras nas polpas digitais e em outras extremidades do corpo, por isso estas medidas de cuidado no seu controle são tão importantes. O uso de medicamentos vasodilatadores auxilia no controle do Fenômeno de Raynaud moderado a grave, na prevenção e no tratamento das úlceras na pele. Algumas vezes, dada a intensidade dos sintomas pelo prejuízo na circulação, danos na região afetada e infecção associada, faz-se necessário o tratamento em regime hospitalar.
É preciso um cuidado especial com a alimentação, recomenda-se mastigar bem os alimentos e atenção com a sua deglutição, devendo-se evitar aqueles que estimulam refluxo gastro-esofágico (ex: álcool, cafeinados, chocolate, frituras) e buscar uma diversidade que garanta o fornecimento adequado de calorias e nutrientes e auxilie no equilíbrio da microbiota intestinal. Outras medidas para evitar o refluxo gastro-esofágico e riscos de infecções respiratórias associadas a aspirações consistem em fazer a última refeição do dia pelo menos duas horas antes de deitar para dormir e manter a cabeceira da cama elevada. O uso de medicamentos que estimulem o movimento de peristalse do trato digestivo e auxiliem no controle dos desconfortos relacionados ao refluxo pode ser útil para alguns.
Para aqueles com hipertensão pulmonar, pode ser indicado o uso de vasodilatadores para o controle da pressão em artéria pulmonar, como a sidenafila, a bosentana e a ambrisentana, assim como o uso de oxigênio auxilia a manter a adequada oxigenação do sangue. Caso haja sinais de sobrecarga cardíaca, medicamentos específicos para minimizá-la poderão ser prescritos.
O tratamento com imunossupressores pode estar indicado em alguns casos de acometimento cutâneo extenso, fibrose pulmonar e acometimento cardíaco com o objetivo de reduzir a inflamação e controlar a fibrose, dentre estes podemos citar a ciclofosfamida, o metotrexato, a azatioprina, o micofenolato mofetil, o rituximabe e, recentemente, foi lançado o nintedanibe. Embora se observe benefícios com o uso destes medicamentos no tratamento da esclerose sistêmica na prática clínica e alguns estudos científicos, ainda são poucos aqueles que os avaliam de forma mais criteriosa e definem seu benefício num nível de evidência científica mais elevado. O fato de a esclerose sistêmica ser uma doença rara dificulta a realização de estudos deste tipo, exigindo uma colaboração de centros de pesquisa de diferentes lugares para realizá-los.
O hábito de fumar também deve ser repensado... O tabagismo está associado à piora do Fenômeno de Raynaud, dificuldade de cicatrização de úlceras nos dedos, exacerbação dos sintomas de refluxo gastro-esofágico e, no caso de comprometimento pulmonar presente, funciona como um agressor extra aos pulmões, ampliando os danos na arquitetura pulmonar. Pois é, melhor repensar a relação custo x benefício e buscar ajuda para deixar de ser fumante...
Exercícios físicos são sempre importantes, sejam orientados por educadores físicos ou fisioterapeutas, para auxiliar no condicionamento cardiorrespiratório, equilíbrio, flexibilidade e força. No caso de maior comprometimento das mãos, um terapeuta ocupacional pode auxiliar nas orientações quanto às medidas de proteção articular e dicas para adaptação na execução de tarefas manuais contribuindo para a manutenção da autonomia para a execução de tarefas da vida diária.
Diante do amplo espectro de manifestações clínicas, o tratamento da esclerose sistêmica deve ser conduzido por uma equipe multidisciplinar, da qual poderão fazer parte além do reumatologista, o dermatologista, o gastroenterologista, o pneumologista, o cardiologista, o vascular, fisioterapeutas, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e psicólogos. Um olhar ampliado para a doença, mas centrado no paciente é um bom guia das melhores estratégias a serem definidas como tratamento para a esclerose sistêmica.