CONVERSANDO SOBRE A SÍNDROME DO ANTICORPO ANTIFOSFOLIPIDE

Dr(a), o que são estes anticorpos antifosfolipides?


Os anticorpos antifosfolípides constituem uma família heterogênea de auto-anticorpos dirigidos contra complexos de proteínas combinados com fosfolípides. Os fosfolípides são um tipo de gordura presente em nosso organismo, que constituem um dos principais componentes da estrutura da membrana celular (aquela “capinha” que delimita o conteúdo da célula).

O primeiro anticorpo antifosfolípide foi descrito em 1906, em soros de indivíduos com sífilis. Esta descoberta foi a base para o desenvolvimento de um teste de triagem para sífilis, conhecido como VDRL. Algum tempo depois, observou-se que alguns pacientes com lúpus eritematoso sistêmico apresentavam o teste VDRL positivo, sem a confirmação de sífilis em testes mais específicos. Após 1950, novas pesquisas identificaram um anticorpo que interferia na coagulação e o correlacionaram com estes testes de VDRL falso positivos para sífilis. Posteriormente, pesquisadores associaram a ocorrência de tromboses com este anticorpo e novos estudos levaram ao desenvolvimento de novas técnicas de laboratório mais sensíveis para identificar outros auto-anticorpos desta família também relacionados a tromboses. E, finalmente, no final da década de 1980, foi descrita a Síndrome do Anticorpo Antifisfolípide, a qual inclui todas as manifestações clínicas associadas à presença destes anticorpos anfosfolipidios. 

Como podem perceber a Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide é ‘uma jovenzinha’ entre nós. Um exemplo de como a construção do conhecimento é um processo contínuo. Um processo que exige observação, curiosidade, atenção a detalhes e muita determinação na busca por respostas. 

 

Quer dizer que a Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide também é uma doença autoimune?

Sim, a Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide (SAF) é uma doença autoimune de causa desconhecida, mais comum em mulheres de meia idade, mas pode ser observada em qualquer faixa etária.

Estudos realizados até o momento sugerem que uma complexa associação entre predisposição genética e fatores ambientais leve ao desenvolvimento da SAF.

Algumas pesquisas em ciência básica revelaram uma maior freqüência de Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide com determinados genes do complexo de histocompatibilidade (HLA), mas muito ainda estar por ser explorado neste campo do conhecimento.

A observação de associação da presença dos anticorpos antifosfolipides com ou sem manifestações clínicas que configuram o diagnóstico da Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide em outras doenças autoimunes reumatológicas, alguns tipos de câncer, doenças hematológicas, neurológicas, infecções e, até mesmo durante o uso de alguns medicamentos têm levado ao desenvolvimento de várias hipóteses para explicar o surgimento da SAF. Uma destas teorias é que um estímulo ambiental estimule o sistema imune a produzir uma resposta imunológica com reação cruzada com estruturas do próprio organismo. A partir daí, surgiriam alterações no processo de coagulação e danos a estrutura de vasos sanguíneos que levariam ao surgimento dos sintomas que caracterizam a SAF.

Existem vários grupos de cientistas no mundo todo trabalhando em parceria para produzir estudos com o objetivo de melhorar o entendimento da SAF e seu tratamento.  

 

Dr(a), quais são os sintomas da SAF? O que as alterações na coagulação desta síndrome causam?

PARTE 1 – As principais manifestações clínicas causadas pelas alterações na coagulação presentes na Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide (SAF) são as tromboses. Um quadro de trombose se caracteriza pela formação de um coágulo dentro de um vaso sanguíneo (veia ou artéria) que leva a uma obstrução de fluxo associada à inflamação da parede deste vaso acometido. Os sintomas da trombose dependem se o vaso comprometido foi uma veia ou artéria, qual o calibre deste vaso e se a trombose ocorreu de forma rápida ou lenta.

Os vasos mais acometidos por trombose na SAF são as veias dos membros inferiores, sendo este quadro chamado de trombose venosa profunda (TVP). Nestes casos, o paciente queixa-se de dor na panturrilha, podendo este sintoma vir acompanhado de inchaço e calor na perna. Uma complicação possível nestes casos é um pedaço do coágulo formado na veia da perna se deslocar pela circulação e causar obstrução de um vaso sanguíneo da circulação pulmonar, o que chamamos de tromboembolismo (ou embolia) pulmonar (TEP). Num TEP podem ser observados desde dor torácica e falta de ar, até insuficiência cardíaca e/ ou respiratória, sendo a gravidade do quadro bastante variável. No entanto, a ocorrência de embolia pulmonar sem a associação com trombose venosa profunda também é possível na SAF.

PARTE 2 - Outro sítio comum de formação de coágulos na Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide (SAF) são as artérias cerebrais, sendo esta a causa de acidentes vasculares cerebrais isquêmicos (AVCi) ou ataques isquêmicos transitórios (AIT). A ocorrência de AVCi e AIT em pessoas com menos de 45 anos, sem outros fatores de risco para doenças cardiovasculares, como hipertensão arterial, diabetes, aumento de colesterol e triglicérides, deve levantar suspeita de que a SAF ou outro distúrbio de coagulação esteja presente. 

Algumas vezes ocorrem múltiplas obstruções em minúsculas artérias cerebrais que passam despercebidas por não causarem sintomas súbitos expressivos, mas que com o tempo podem levar a alterações de memória, prejuízo na concentração, aprendizagem, orientação e execução de tarefas. 

Outras manifestações neurológicas descritas em indivíduos com SAF incluem a enxaqueca, crises convulsivas, mielite transversa (quadro de lesões isquêmicas na medula espinhal) e coréia (quadro raro movimentos involuntários dos membros).

PARTE 3 - Outros órgãos acometidos na Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide (SAF) são o coração, os rins, os olhos e a pele. 

No coração, quando ocorre obstrução das artérias coronárias (vasos que nutrem o músculo do coração) acontece o infarto do miocárdio. As válvulas cardíacas também podem ser comprometidas na SAF, nelas se formam coágulos, os quais podem se desprender e causar obstrução de vasos sanguíneos de outros órgãos. 

Nos rins, o comprometimento da circulação arterial renal pode causar insuficiência renal, hipertensão arterial, perda de proteína na urina, de início agudo ou insidioso, algumas vezes associado à anemia e queda de plaquetas. 

Nos olhos, o acometimento de artérias e veias da retina pode levar a redução da acuidade visual em graus variáveis. 

Na pele, a manifestação mais comum é o livedo reticular. O livedo reticular caracteriza-se por um padrão de coloração da pele eritemato-arroxeada, de aspecto rendilhado, o que dá um aspecto marmóreo a pele. Ele resulta do espasmo dos vasos da pele quando exposta ao frio. Nem sempre o livedo reticular se associa a doenças, como a SAF ou outras doenças autoimunes e vasculares, podendo ser observado em pessoas sem doenças. Raramente, indivíduos com SAF podem apresentar úlceras em polpas digitais e vasculite na pele.

Além destes órgãos, outros podem ser acometidos por trombose, isso torna a SAF uma doença de manifestação clínica bastante heterogênea.

Dr(a), como a Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide interfere na gravidez?

Na Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide, a ocorrência de trombose nos vasos da placenta junto a outras alterações hormonais e inflamatórias interfere de várias maneiras com a viabilidade da gravidez e a saúde da mãe e do bebê, com risco aumentado de prejuízos para o crescimento intra-uterino do feto, ocorrência de pré-eclampsia e eclampsia, parto prematuro e perda fetal. 

As obstruções de fluxo na circulação da placenta limitam a chegada adequada de nutrientes ao feto, levando a um crescimento num ritmo diferente do observado em gestações habituais. 

A pré-eclampsia consiste no desenvolvimento de hipertensão arterial especifica da gravidez, a partir da 20ª semana em diante. O aumento da pressão arterial pode ser assintomático, mas pode vir acompanhado de inchaço nos membros inferiores, aumento significativo de peso e perda de proteínas na urina (esta pode ser notada pela presença de espuma na urina). Quando não controlada, a pré-eclampsia pode evoluir para a eclampsia, um quadro mais grave caracterizado pela presença de dores de cabeça e/ou de estômago, turvação visual, convulsões, sangramento vaginal e até coma. O acompanhamento pré-natal é fundamental para que medidas adequadas sejam tomadas para a prevenção e controle da pré-eclampsia e eclampsia, o que pode incluir a antecipação do parto. Feito o parto, com a retirada da placenta, as alterações observadas na mãe tendem a desaparecer.

As condições acima colaboram para que o parto aconteça prematuramente, ou seja, antes do tempo habitual, demandando cuidados especiais ao bebê a fim de garantir a sua sobrevida após o nascimento.

Atualmente, a SAF é considerada uma causa comum de perda fetal. Embora a perda fetal possa ocorrer em qualquer tempo da gestação, aquelas que acontecem no segundo e terceiro trimestre são mais as sugestivas de serem causadas pela SAF. Sem um tratamento adequado, as perdas fetais tendem a ser recorrentes.

A experiência da vivência de quadros de pré-eclampsia, eclampsia e perdas fetais pode ser bastante traumática, motivo de muita angustia e tristeza. Um olhar cuidadoso ao planejamento familiar e pré-natal das mulheres com SAF é fundamental para minimizar a ocorrência destes cenários.

Dr(a), como é feito o diagnóstico da Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide? A simples presença de um destes anticorpos antifosfolipides determina a presença desta doença?

Para se definir o diagnóstico da Síndrome do Anticorpo Antifosfolipide (SAF) é preciso correlacionar a ocorrência de pelo menos uma trombose vascular ou um dos eventos obstétricos descritos na SAF com a presença de dois ou mais exames positivos de pelo menos um dos anticorpos antifosfolipides. 

Uma trombose vascular pode ser arterial ou venosa, em qualquer órgão, e que tenha sido confirmada por exame de imagem (ultrassom com doppler, tomografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética) ou biposia.

Os eventos obstétricos relacionados à SAF e que podem ser considerados para o seu diagnóstico são: a ocorrência de uma ou mais mortes de feto normal, com mais de 10 semanas de gestação OU um ou mais nascimentos prematuros de feto normal com tempo de gravidez ≤ 34 semanas devido a pré-eclampsia, eclampsia ou por insuficiência da circulação placentária OU três ou mais abortos espontâneos antes de 10 semanas de gravidez sem associação com alterações hormonais ou da anatomia da mãe e/ou alterações genéticas.

A investigação de anticorpos antifosfolipides habitualmente é feita através da pesquisa laboratorial de anticoagulante lúpico, anticardiolipina IgG e anticardiolipina IgM; em algumas situações, pode ser necessário a realização de anti-β2glicoproteína I IgG e anti-β2glicoproteína I IgM. É preciso repetir estes exames, com intervalo ao menos de 12 semanas, para se identificar a presença destes anticorpos em mais de uma ocasião para se confirmar o diagnóstico de SAF.

Portanto, um exame positivo para um dos anticorpos antifosfolipide isoladamente, sem nenhuma manifestação clínica sugestiva, não permite fazer o diagnóstico de SAF.

Dr(a), como é feito o tratamento da Síndrome do Anticorpo Antifosfolípede?

Existem diferentes cenários de manifestações clínicas possíveis na SAF, para cada um deles há a preferência por um esquema de anticoagulação que pode envolver o uso de AAS, heparina, heparina de baixo peso molecular (ex: enoxaparina) ou trombolítico.

Na gestação, dá-se preferência ao uso de heparina de baixo peso molecular ao invés da varfarina, em especial pelo risco de má formação com o uso desta última nos primeiros três meses de gravidez. Após o parto, a anticoagulação deve ser mantida, pois há um risco aumentado de trombose neste período. No entanto, o aleitamento materno pode ser liberado tanto com o uso de AAS, quanto de heparina ou varfarina.

A hidroxicloroquina tem sido cada vez mais incorporada ao tratamento medicamentoso da SAF, em especial pelo seu efeito imunomodulador e anti-trombótico.

Ainda existem muitas questões em debate sobre o tratamento da SAF. Embora não tenha sido demonstrado efeito benéfico do uso de corticosteróides na SAF, na vigência de trombose(s) recorrente(s) num curto intervalo de tempo apesar de anticoagulação adequada ou queda acentuada de plaquetas (< 50000) ou anemia hemolítica grave, a corticoterapia pode ser utilizada, assim como a imunoglobulina humana, a plasmaferese, a ciclofosfamida e o rituximabe. 

É importante lembrar que os contraceptivos hormonais e a terapia de reposição hormonal são contra-indicados em mulheres com SAF por serem estas medicações relacionadas a um risco aumentado de trombose.

Além da anticoagulação, o que mais é possível fazer no tratamento da SAF?

Além da anticoagulação, é importante dar atenção as medidas de controle para outros fatores de risco para trombose, como obesidade, hipertensão arterial, aumento de colesterol e triglicérides, diabetes e tabagismo.

Uma dieta saudável e bem equilibrada é fundamental para controle de peso, metabolismo de açúcares e gorduras e manutenção de bons níveis de pressão arterial.

A prática regular de atividade física contribui para a manutenção de bom condicionamento cardiorrespiratório e percentual adequado de massa muscular e gordura. No caso de uso de anticoagulante, como a varfarina, as atividades de maior impacto e contato físico devem ser evitadas pelo risco de acidentes e sangramentos.

O tabagismo é sempre um complicador de doenças reumáticas, porém parar de fumar nem sempre é fácil... Além da conscientização dos malefícios do tabagismo para a saúde é preciso vontade e determinação para interromper este hábito, um processo que pode ser mais ou menos difícil de uma pessoa para outra. O importante é buscar ajuda sempre que necessário para alcançar a meta de parar de fumar.

Um ponto importante no acompanhamento de mulheres com SAF é o planejamento familiar. Esclarecer quanto às opções de métodos contraceptivos mais seguros sem risco adicional de trombose, sobre a necessidade de planejar a gravidez para a eventual adequação de medicamentos em uso por outros mais seguros para o desenvolvimento do bebe e reforço da necessidade de anticoagulação durante a gravidez e pós-parto é fundamental. Um bom planejamento familiar e um pré-natal cuidadoso tornam possível a conciliação da realização do desejo da maternidade e manutenção de bem estar da mulher. Neste processo, é de grande valia contar com uma rede de apoio, constituída por familiares, amigos e profissionais da saúde.