CONVERSANDO SOBRE TECIDO CONJUNTIVO
Dr(a), o que quer dizer “Doença Indetermidada do Tecido Conjuntivo”?
Este nome é usado para se referir a uma doença com um quadro clínico caracterizado pela presença de sinais e sintomas sugestivos de uma doença reumática auto-imune sistêmica, mas não com critérios suficientes para se diagnosticar uma doença do tecido conjuntivo bem definida, como, por exemplo, o lupus eritematoso sistêmico, artrite reumatóide ou esclerose sistêmica.
Na prática clínica, às vezes, este nome gera alguma confusão. Pois, dependendo da forma como é colocado, pode-se sem querer passar a impressão de que o médico não sabe o que o paciente tem e não é nada disso.
Confesso que, embora para o médico seja fácil entender do que se trata, para o paciente nem sempre é... Já ouvi algumas vezes que a palavra ‘indeterminada’ “soa estranho” ou “é ruim ter um quadro indeterminado”.
O termo ‘indeterminada’ causa algum desconforto, mas Doença Indeterminada do Tecido Conjuntivo é o nome de uma doença e implica num diagnóstico feito. E a compreensão desta situação é bastante tranqüilizadora para o paciente.
Dr(a), como é a Doença Indeterminada do Tecido Conjuntivo?
Um dos quadros mais freqüentes é de pacientes com fenômeno de Raynaud associado a artralgias ou artrite, com o exame de FAN (fator anti-nuclear) positivo e/ou alterações inespecíficas ao exame de capilaroscopia periungueal. A avaliação clínica não revela outras queixas, achados mais específicos ao exame físico e/ ou alterações significativas em exames laboratoriais ou de imagem.
O fenômeno de Raynaud consiste numa resposta exagerada dos vasos sanguíneos a exposição a temperaturas mais baixas ou estresse emocional, sendo possível de ser observado em mãos, pés, orelhas e nariz. Num primeiro momento, ocorre uma redução do fluxo sanguíneo pelo espasmo dos vasos superficiais, que pode ser percebido como uma palidez. Na seqüência, pelo consumo do oxigênio do sangue parado, observa-se um ‘arroxeamento’ (cianose), seguido de uma vermelhidão causada pelo restabelecimento do fluxo sanguíneo.
O fenômeno de Raynaud não é exclusivo de uma única doença; além da Doença Indeterminada do Tecido Conjuntivo, ele pode ser visto em outras doenças, como a esclerose sistêmica e o lúpus eritematoso sistêmico.
Vale lembrar que o Fenômeno de Raynaud também pode ser observado em pessoas normais, numa freqüência de 8% nas mulheres e 2-3% nos homens. Portanto, nem sempre a sua presença é equivale a uma doença, tudo depende do contexto.
Outra situação comum é de indivíduos que chegam ao reumatologista com quadro de poliartrite (dor, calor e edema de mais de três articulações), sem outras manifestações sugestivas de uma doença difusa do tecido conjuntivo, como a esclerose sistêmica ou o lupus eritematoso sistêmico.
Nestes casos, os resultados dos exames de imagem das articulações acometidas, radiografias, ultra-som ou ressonância nuclear magnética, não revelam alterações mais específicas que permitam definir o diagnóstico de artrite reumatóide.
Embora a investigação laboratorial possa revelar um resultado de FAN (fator anti-nuclear) positivo, nestes quadros de Doença Indiferenciada do Tecido Conjuntivo, o resultado do fator reumatóide ou quaisquer outros auto-anticorpos é negativo.
Uma história clínica detalhada, exame físico minucioso e uma avaliação laboratorial e de imagem são de extrema importância. A análise em conjunto de todas estas variáveis é fundamental para um diagnóstico mais preciso.
E como é feito o tratamento da Doença Indiferenciada do Tecido Conjuntivo?
O tratamento da Doença Indiferenciada do Tecido Conjuntivo é feito de acordo com o quadro clínico, ou seja, conforme os sinais e sintomas mais expressivos, define-se o tratamento.
Aqueles com predomínio do Fenômeno de Raynaud são orientados quanto às medidas de cuidado para controlar e/ ou evitar exposição a frio, estresse emocional e alguns medicamentos (descongestionantes e anfetaminas) que podem desencadeá-lo. Em alguns casos mais sintomáticos, pode estar indicado o uso de medicamentos vasodilatadores.
Para os casos onde predomina a poliartrite, analgésicos e anti-inflamatórios podem ser utilizados para alívio da dor e edema. O uso de corticóide em dose baixa pode ser indicado para alguns, assim como o metotrexato.
Igualmente importantes são as orientações quanto à interrupção do hábito de fumar e estímulo para bons hábitos alimentares, de sono e atividade física. Afinal, um estilo de vida mais saudável contribui para um melhor estado de saúde com mais qualidade de vida.
Dr(a), como a Doença Indiferenciada do Tecido Conjuntivo evolui?
Uma das maiores preocupações dos pacientes com Doença Indiferenciada do Tecido Conjuntivo é quanto ao seu prognóstico- como ela pode evoluir ao longo do tempo.
Existe a possibilidade de com o tempo surgirem novos sinais e sintomas associados a alterações em exames que caracterizem uma outra doença difusa do tecido conjuntivo, sendo possível a evolução para artrite reumatóide, lúpus eritematoso sistêmico, esclerose sistêmica ou dermatomiosite.
No entanto, alguns estudos realizados demonstraram que isso ocorre em torno de 1/3 dos casos.
A maioria dos casos de Doença Indiferenciada do Tecido Conjuntivo permanece com as mesmas características ao longo da sua evolução, sendo possível uma remissão completa do quadro clínico sem recidivas.
Dr(a), o que é uma Doença Mista do Tecido Conjuntivo?
No início da década de 70, um grupo de pesquisadores descreveu um grupo de pacientes que apresentavam uma combinação de características clínicas de lúpus eritematoso sistêmico, esclerose sistêmica, artrite reumatóide ou dermatomiosite, associada à presença de anticorpos extraíveis do núcleo, chamados de anti-ENA. Pesquisas posteriores demonstraram que estes anticorpos dirigiam-se contra uma fração específica de uma das proteínas nucleares, denominada anti-U1RNP.
Portanto, a Doença Mista do Tecido Conjuntivo caracteriza-se pela presença de sinais e sintomas sugestivos de mais de uma doença do tecido conjuntivo sem a definição clara de nenhuma delas, na presença de um marcador sorológico específico, o anti-U1RNP, na ausência dos demais auto-anticorpos específicos para outras doenças, como por exemplo: o anti-Sm.
Muita controvérsia em torno desta entidade tornou a sua existência polêmica por bastante tempo. Embora alguns defendam ser este quadro um subtipo de Doença Indeterminada do Tecido Conjuntivo, nas últimas décadas ele tem sido considerado uma entidade em separado das demais doenças do tecido conjuntivo, ‘batizado’ com o nome de Doença Mista do Tecido Conjuntivo.
Dr(a), quais são as principais características da Doença Mista do Tecido Conjuntivo?
A Doença Mista do Tecido Conjuntivo é mais comum em mulheres, numa proporção de 9 mulheres acometidas para cada homem com a doença. Habitualmente, seus sintomas se iniciam entre os 20 e 30 anos de vida, mas pode surgir em outras faixas etárias.
A sua apresentação mais comum é com fenômeno de Raynaud associado a edema difuso das mãos. O acometimento das articulações é muito freqüente, sendo descrito desde quadros de artralgias até de poliartrite. Fraqueza muscular de braços e coxas pode ser visto em cerca de 60% dos casos. O acometimento da pele pode ocorrer em torno de 40% dos casos, sendo descrito espessamento da pele dos dedos das mãos, presença de áreas de calcificação na pele, pequenas manchas associadas a dilatação de pequenos vasos sanguíneos da pele, maior sensibilidade a luz ultravioleta e manchas vermelhas na face.
Os órgãos internos também podem ser comprometidos, sendo descrito dificuldade de deglutição e sintomas sugestivos de refluxo gastro-esofágico, fibrose pulmonar, hipertensão pulmonar, insuficiência cardíaca, glomerulonefrite e neuropatias periféricas.
Dr(a), como é feito o diagnóstico da Doença Mista do Tecido Conjuntivo?
O diagnóstico da Doença Mista do Tecido Conjuntivo nem sempre é fácil. Os sinais e sintomas desta doença, bem como a sua apresentação, lembram muito as outras doenças do tecido conjuntivo: esclerose sistêmica, lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatóide e dermatomiosite. Uma história e exame físico detalhados são fundamentais para orientar o raciocínio clínico, pedido de exames complementares e a sua interpretação.
De acordo com os sintomas apresentados, podem ser necessários exames direcionados a pesquisa de acometimento articular (radiografias, ultrassonografia e/ou ressonância nuclear magnética), esofágico (endoscopia digestiva alta, manometria de esôfago e/ou Phmetria 24h), pulmonar (prova de função pulmonar e tomografia de tórax), cardíaco (ecodopplercardiograma) e de nervos periféricos (eletroneuromiografia).
Em exames de laboratório, podem ser observados anemia, redução de células de defesa e plaquetas, provas de atividade inflamatória (velocidade de hemossedimentação (VHS), proteína C reativa (PCR)) elevadas, alterações no exame de eletroforese de proteína e hematúria e/ ou proteinúria em exame de urina. O fator reumatóide é positivo em cerca de 70% dos casos. O exame de FAN (fator antinuclear) é positivo em todos os casos, assim como o anticorpo anti-U1RNP em títulos altos. A pesquisa de células LE, anti-DNA, anti-Sm, anti-centrômero e anti-Jo1 é negativa na Doença Mista do Tecido Conjuntivo.
Ao concluir toda a investigação, pode-se utilizar um dos critérios diagnósticos propostos para a Doença Mista do Tecido Conjuntivo, que incluem variáveis clínicas associadas à presença obrigatória do anticorpo anti-U1RNP em títulos altos (≥ 1:1600).
Dr(a), como é feito o tratamento da Doença Mista do Tecido Conjuntivo?
O tratamento da Doença Mista do Tecido Conjuntivo é orientado pelo quadro clínico, considerando-se os sinais e sintomas predominantes.
A abordagem do fenômeno de Raynaud é feita considerando-se a sua intensidade. Em algumas situações as orientações para controle dos fatores desencadeantes, como evitar a exposição ao frio com uso adequado de agasalhos, evitar medicamentos como descongestionantes e anfetaminas e desenvolver habilidades para gerenciar melhor o estresse podem ser suficientes. Em outros, quando o fenômeno de Raynaud é mais intenso e associado a sintomas de dor e alteração de sensibilidade, pode ser necessário o uso de vasodilatadores.
Os sintomas articulares podem ser controlados com analgésicos e/ ou antiinflamatórios. No entanto, em algumas situações pode estar indicado o uso de corticóide em dose baixa e metotrexato.
De acordo com o comprometimento visceral identificado, podem estar indicados uso de medicamentos para controle de refluxo gastro-esofágico, para compensação cardíaca e tratamento de fibrose pulmonar e hipertensão pulmonar. Para estas duas últimas situações deve ser considerado o uso de corticóide e outros imunossupressores.
Outros aspectos relacionados à saúde também são importantes, como hábitos alimentares, padrão de sono, atividade física, tabagismo e estresse. Investir em medidas que tornem o estilo de vida mais saudável são de grande importância e tendem a somar em efeitos positivos na busca por uma melhor qualidade de vida.
Dr(a), é verdade que uma pessoa pode ter mais de uma doença ao mesmo tempo?
Sim, existem casos descritos de pessoas que têm ao mesmo tempo duas ou mais doenças do tecido conjuntivo bem definidas. A análise destes casos revela a presença de sinais e sintomas típicos associados a alterações em exames que permitem o diagnóstico bem definido de mais de uma doença.
A associação mais comum é da Síndrome de Sjögren com uma das doenças do tecido conjuntivo, seja a artrite reumatóide, o lúpus eritematoso sistêmico, a esclerose sistêmica ou a dermatomiosite.
Outras associações possíveis são de esclerose sistêmica com artrite reumatóide ou dermatomiosite ou polimiosite ou lúpus eritematoso sistêmico. A associação de esclerose sistêmica com dermatomiosite ou polimiosite exige uma investigação bem detalhada para tentar diferenciá-la da Doença Mista do Tecido Conjuntivo e da Síndrome Anti-sintetase. Nesta situação em particular, pode ser muito difícil fazer a diferenciação entre estas entidades clínicas, especialmente quando não é possível dosar anticorpos mais específicos, como o anti-U1RNP, o anti-PM-Scl e o anti-Jo1.
O lúpus eritematoso sistêmico também pode se associar a artrite reumatóide, sendo importante identificar a presença de erosões (achado bastante específico da artrite reumatóide) em exames de imagem das articulações para se confirmar a sobreposição.
O tratamento das diferentes formas de Síndrome de Sobreposição depende das manifestações clínicas predominantes e segue as orientações definidas em protocolos de tratamento de cada uma das doenças presentes.
Encerramos a seqüência de posts sobre Doença Indiferenciada do Tecido Conjuntivo, Doença Mista do Tecido Conjuntivo e Síndrome de Sobreposição.
Esta ‘miscelânia’ de doenças reumáticas é de grande interesse para o reumatologista clínico e para pesquisadores, pois seu melhor entendimento pode contribuir para compreendermos melhor como surgem as doenças autoimunes.
Espero ter contribuído para o melhor entendimento destas doenças reumáticas e propiciado uma visão ampliada do trabalho do reumatologista. Estamos sempre revisando conceitos e nos atualizando quanto a novos métodos de avaliação que permitam uma melhor caracterização do quadro clínico e cuidado aos nossos pacientes.
Caso tenha ficado alguma dúvida, fico a disposição!
A nova série de posts vai abordar a Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide- aguardem!