CONVERSANDO SOBRE DOENÇAS INFLAMATÓRIAS MUSCULARES - PARTE 1
Dra, o que seriam as doenças inflamatórias musculares?
As doenças inflamatórias musculares constituem um grupo de doenças bastante raras, com prevalência estimada de 9 a 14 casos por 100.000 pessoas. Elas se caracterizam pelo acometimento dos músculos estriados esqueléticos levando a graus variados de fraqueza muscular. A maioria destas doenças é sistêmica, ou seja, suas manifestações não se restringem aos músculos, sendo possível o comprometimento da pele, coração, pulmões e trato gastrintestinal.
A causa destas doenças ainda é desconhecida, estando em estudo fatores genéticos e ambientais, como vírus e bactérias. Indivíduos geneticamente predispostos as estas doenças, quando expostos a determinados fatores ambientais desenvolveriam alterações imunológicas, as quais causariam inflamação ou destruição das fibras musculares.
Fazem parte deste grupo de doenças: a polimiosite, a dermatomiosite, a miosite por corpúsculos de inclusão e a miopatia necrosante imunomediada.
Algumas doenças auto-imunes sistêmicas, como o lúpus eritematoso sistêmico e a esclerose sistêmica, podem apresentar como manifestação clínica a inflamação muscular. Nestes casos, a inflamação muscular tende a ser menos intensa e a resposta ao tratamento com corticoesteróides é satisfatória. No entanto, vale lembrar que a associação de doenças auto-imunes sistêmicas é possível, ou seja, um indivíduo pode ter lúpus eritematoso sistêmico e polimiosite, por exemplo. As características clínicas da evolução do quadro muscular e resposta deste ao tratamento com corticoesteróides fornecem dicas preciosas para a diferenciação destas duas situações e orientam os ajustes necessários no acompanhamento do paciente e seu tratamento.
Polimiosite
A polimiosite geralmente acomete indivíduos entre os 40 a 60 anos de idade, sendo incomum em crianças. As mulheres são mais acometidas que os homens, numa freqüência de duas mulheres acometidas para cada homem com polimiosite.
A fraqueza muscular é o principal sintoma da polimiosite, se instala lentamente, acometendo principalmente os músculos dos braços e coxas, de forma simétrica (tanto do lado direito quanto do esquerdo do corpo) e tem caráter progressivo. A queixa de dor muscular é incomum na polimiosite.
Em alguns casos, pode haver mudança na voz (disfonia) por comprometimento da musculatura da laringe e/ ou dificuldade de deglutição quando a musculatura do esôfago é acometida.
O acometimento visceral mais comum é o cardíaco, presente em mais de 50% dos casos ao longo do tempo, seguido dos pulmões (45%).
Dores articulares e artrite podem aparecer em cerca de 40% dos pacientes em algum momento da evolução da doença.
O fenômeno de Raynaud, vasculites cutâneas e calcificação de pele e outros tecidos moles podem acontecer, mas são bem raros.
Dermatomiosite
A dermatomiosite pode acontecer na primeira década de vida ou mais adiante, entre os 35 e os 50 anos de idade. Ela é mais comum no sexo feminino, na infância acomete duas meninas para cada menino (2:1) e na idade adulta quatro mulheres para cada homem (4:1).
A fraqueza muscular tem característica semelhante a da polimiosite, no entanto, seu grau de intensidade pode variar de bastante grave até praticamente imperceptível clinicamente.
A principal característica clínica da dermatomiosite é o acometimento cutâneo, sendo algumas das lesões em pálpebras, chamadas de heliotropo, e outras sobre as articulações dos dedos das mãos, cotovelos, joelhos e tornozelos, conhecidas como pápulas de Gottron consideradas bem típicas desta doença.
A calcificação da pele e tecidos moles é mais comum na dermatomiosite do que na polimiosite, surgindo naqueles com mais tempo de evolução.
O fenômeno de Raynaud e as vasculites cutâneas surgem em até 10% dos casos.
O acometimento das articulações, embora mais freqüente do que o observado na polimiosite, costuma ser leve.
Pulmões e coração também podem ser acometidos como acontece na polimiosite, porém a freqüência destes na dermatomiosite é menor (até 25%).
Miosite por corpúsculos de inclusão
A miosite por corpúsculo de inclusão é mais freqüente em homens com idade acima de 50 anos.
Sua evolução é bastante lenta e caracterizada por fraqueza dos músculos das coxas e antebraços e dos músculos extensores e/ou flexores dos dedos das mãos, sendo possível notar o surgimento de atrofia dos antebraços e coxas ao longo do tempo. Com a progressão da doença, pode surgir fraqueza dos músculos das pernas, dificuldade para engolir e respirar.
Muito raramente, a miosite por corpúsculo de inclusão pode se apresentar de forma bem parecida a polimiosite, o que dificulta o seu diagnóstico certeiro no início da sua manifestação.
Por este motivo, vale sempre o esforço para realizar uma biopsia muscular de qualidade, pois os achados deste exame podem revelar alterações que auxiliem na diferenciação entre polimiosite e miosite por corpúsculo de inclusão e viabilizar um planejamento terapêutico mais adequado.
Miopatia necrosante imunomediada
A miopatia necrosante imunomediada é uma doença inflamatória muscular bastante rara, recentemente descrita. Ela se manifesta entre os 40 a 60 anos, como uma fraqueza musculatura de início agudo ou subagudo, com comprometimento dos músculos proximais de membros superiores (braços) e inferiores (coxas) de ambos os lados do corpo. Uma evolução mais lenta e crônica pode ocorrer, porém é mais rara.
Dadas as suas características clínicas, muitas vezes o diagnóstico diferencial com a polimiosite é bastante difícil, portanto, uma biopsia muscular de qualidade é de extrema valia na avaliação destes casos.
A miopatia necrosante imunomediada pode ocorrer na vigência de infecções virais, outras doenças auto-imunes do tecido conjuntivo, alguns tipos de neoplasias e durante o uso de certos medicamentos. A evolução deste tipo de miopatia inflamatória é bastante variável, há descrições na literatura médica de completa recuperação sem recaídas até uma evolução progressiva sem melhora com tratamento.
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No próximo post vamos conversar sobre como diagnosticar e sobre como são feitos os tratamentos.
Até lá.
Dr(a), como é feito o diagnóstico de uma doença inflamatória muscular?
Ao longo dos anos, critérios diagnósticos diferentes, baseados em dados clínicos, laboratoriais e de biopsias, têm sido propostos com o objetivo de aprimorar a diferenciação destas doenças entre si e de outras doenças musculares causadas por alterações metabólicas, endócrinas, tóxicas e distrofias musculares. Especialmente nos casos em que não há acometimento cutâneo, o diagnóstico diferencial destas doenças pode ser bastante difícil e exigir um trabalho colaborativo de reumatologistas com neurologistas.
Portanto, uma história clínica detalhada associada a um exame físico minucioso, com atenção as características dos sinais e sintomas e sua evolução ao longo do tempo são fundamentais para orientar a investigação.
Além de hemograma e provas de atividade inflamatória, a dosagem de enzimas musculares é essencial, pois elas habitualmente estão muito elevadas nestas doenças, algumas vezes mais de 10x os valores de referência. As transaminases (TGO e TGP), embora mais utilizadas para avaliar as doenças do fígado, também podem estar alteradas nas doenças inflamatórias musculares.
O FAN (Fator Anti-Nuclear) pode estar positivo em cerca de 25 a 40% dos casos de dermatomiosite e polimiosite. Outros auto-anticorpos mais específicos para as miosites podem ser úteis para auxiliar a investigação conforme o contexto clínico, como o anti-Jo-1, anti-Mi2, o anti-HMGCR e o anti-SRP.
A eletroneuromiografia é um exame importante na investigação diagnóstica, pois auxilia na diferenciação da fraqueza de origem muscular daquelas causadas por alterações neurológicas. A qualidade deste exame é muito dependente da formação e experiência do profissional que o realiza, quanto melhor for seu preparo, melhor a qualidade do exame.
Em algumas situações, a ressonância nuclear magnética é útil na avaliação de sinais sugestivos de inflamação muscular, bem como para estimar a cronicidade e grau de hipotrofia/ atrofia muscular e substituição dos músculos por gordura.
A biopsia muscular é fundamental na investigação e muitas vezes determinante para uma maior precisão diagnóstica. No entanto, nem sempre os achados da biopsia são conclusivos e, dependendo do contexto, novas biopsias podem ser necessárias. A qualidade da biopsia muscular também depende de uma série de fatores que vão desde a coleta do material e seu preparo até a experiência e qualidade da formação técnica do médico patologista.
Dr(a) como é feito o tratamento medicamentoso das doenças inflamatórias musculares?
O corticóide ainda é a medicação de escolha para o tratamento inicial das doenças inflamatórias musculares. Em algumas situações, pode ser necessário o uso de doses muito altas desta medicação por via endovenosa (pulsoterapia) para controlar o processo inflamatório de forma mais rápida naqueles com quadro clínico mais grave.
O uso de outras medicações imunossupressoras junto a corticoterapia deve ser considerada para melhor controle da doença a médio e longo prazo, visando reduzir as chances de reativação e os riscos de efeitos colaterais devido ao uso prolongado de corticóides. O metotrexato, a azatioprina, a ciclofosfamida e a ciclosporina são algumas das opções de imunossupressores a serem utilizados. Para casos considerados refratários, a imunoglubulina humana pode ser indicada. Em algumas situações, especialmente quando há comprometimento pulmonar significativo, o rituximabe pode ser útil.
Para as manifestações cutâneas da dermatomiosite, os antimaláricos (ex: hidroxicloroquina) podem ser utilizados junto das demais medicações citadas acima.
É importante ressaltar que a raridade destas doenças dificulta a realização de estudos clínicos para uma avaliação mais adequada quanto a efetividade das diferentes opções de tratamento. É preciso que a comunidade acadêmica se mantenha organizada para viabilizar trabalhos científicos com a participação colaborativa de vários centros de pesquisa para se produzir melhores evidências sobre estas doenças.
Os pacientes com doenças inflamatórias musculares podem fazer exercícios?
A reabilitação nas doenças inflamatórias musculares tem por objetivo preservar a função muscular, e, quando possível: melhorá-la, prevenir as atrofias musculares e evitar as contraturas articulares que surgem em decorrência da redução da mobilidade articular causada pela fraqueza muscular.
As orientações sobre reabilitação nas miosites variam conforme o grau da atividade inflamatória presente. Nas fases de maior atividade inflamatória, as orientações sobre melhor posicionamento e exercícios leves realizados de forma passiva com a ajuda do fisioterapeuta são importantes para a prevenção de contraturas. Na medida em que a atividade inflamatória diminui iniciam-se programas com exercícios ativos (realizados pelo paciente) com o objetivo de melhorar o tônus, a resistência e a força muscular.
Dr(a), o que mais, além de medicamentos e reabilitação, é importante cuidar para promover a melhora dos pacientes com doença inflamatória muscular?
Um suporte nutricional é de grande importância no cuidado dos pacientes com doenças inflamatórias musculares.
Uma dieta equilibrada para fornecer um aporte adequado de proteínas para contribuir para a regeneração muscular é fundamental. Porém, outros aspectos clínicos relacionados à presença de outras doenças e ao uso crônico de corticóide são igualmente relevantes.
Um percentual não desprezível dos pacientes com doenças inflamatórias musculares apresenta alterações do metabolismo de açúcares (hiperinsulinemia, intolerância a glicose ou diabetes), aumento de colesterol e triglicérides, hipertensão arterial e/ ou estão acima do peso ideal. O controle adequado destas alterações contribui para um melhor estado de saúde ao auxiliar na redução da atividade inflamatória e risco de eventos cardiovasculares.
Deve-se dar atenção quanto a necessidade de suplementação de cálcio e vitamina D como medida para reduzir o risco de osteoporose relacionada a imobilidade e ao uso prolongado de corticóide.
Para aqueles que fumam, vale à pena investir em medidas que auxiliem a interromper o hábito do tabagismo, especialmente se houver acometimento pulmonar.
Muitas vezes a adaptação ao convívio com uma doença crônica é um desafio, a este se somam outros fatores estressantes da vida moderna, o que muitas vezes gera tristeza e angustia. Adotar práticas que auxiliem a relaxar e buscar apoio em profissionais da área de saúde mental é de grande ajuda para desenvolver recursos de enfrentamento e gerenciamento de estresse.