CONVERSANDO SOBRE GOTA
“Meu ácido úrico está alto, isso quer dizer que eu tenho gota?”
O ácido úrico é uma substância normalmente encontrada no nosso organismo. Ele surge da degradação de um tipo de proteína, chamada purina, encontrada em vários alimentos, como miúdos, vísceras, peixes, frutos do mar, enlatados, conservas, defumados, carnes vermelhas e gordas e bebidas alcoólicas, especialmente a cerveja. Durante o processo de degradação das purinas, elas são transformadas em ácido úrico, uma parte deste permanece no nosso organismo e o restante é excretado pelos rins.
Quando a quantidade de ácido úrico no sangue se eleva acima do normal podem surgir crises recorrentes de artrite, formação de depósito de cristais de ácido úrico nas estruturas articulares ou próximas a elas e/ ou em outros órgãos, como os rins, por exemplo. O conjunto destas alterações relacionadas ao metabolismo do ácido úrico recebe o nome de gota. Esta doença pode se apresentar de várias formas, com diferentes combinações destas manifestações clínicas, ou seja, um paciente pode apresentar somente crises agudas de artrite e outro, além destas, apresentar depósitos dos cristais e/ ou alterações de função renal ou cálculos renais.
Sendo assim, o aumento isolado de ácido úrico no sangue, conhecido pelo termo hiperuricemia, não é sinônimo de gota. Para firmar o diagnóstico de gota é preciso constatar a presença de sinais e sintomas sugestivos da doença, associados a níveis elevados de ácido úrico no sangue e/ou identificação de depósitos de cristais de ácido úrico no líquido da articulação inflamada. Ressalto o “e/ou” por uma questão relevante: a dosagem de ácido úrico no sangue feita durante uma crise aguda de gota pode ser normal e não descarta o diagnóstico. Por isso, quando há suspeita de gota, sempre que possível, se faz a punção e análise do líquido da articulação inflamada para a pesquisa dos cristais de urato com o objetivo de confirmar o diagnóstico.
Para aquele indivíduo que tem somente a hiperuricemia e não apresenta nenhuma queixa sugestiva de gota, é aconselhável uma avaliação quanto à presença de fatores que possam estar associados a ela e efetuar ajustes na dieta e atividade física para controle de peso, pressão arterial e outras variáveis metabólicas, como glicemia, insulina, colesterol e triglicérides. A adoção destas medidas preventivas é fundamental para a redução do risco cardiovascular relacionado a alterações nestas variáveis clínicas e, conseqüentemente, para a manutenção de uma boa qualidade de vida.
“No início, os ataques de gota eram bem espaçados, agora tenho uma crise atrás da outra... e os remédios que usava não surtem mais o mesmo efeito, e agora?”
Relatos como este são muito comuns no consultório e refletem a história natural da gota. Mas, infelizmente, histórias como esta, na maioria das vezes, também revelam a falta de tratamento adequado para a gota, seja por desconhecimento da doença e objetivos do tratamento e/ou por baixa adesão as orientações feitas para o seu controle.
Vamos começar pela história natural da doença: como ela habitualmente evolui? Podemos dividir esta evolução em três fases: a artrite gotosa aguda, os períodos intercríticos e a gota crônica.
A fase de artrite gotosa aguda geralmente manifesta-se na quarta década de vida com uma crise súbita de dor, associada a calor, rubor e edema na articulação comprometida. Normalmente, uma única junta é acometida na crise, sendo mais freqüente o acometimento da primeira metatarsofalangeana do primeiro dedo do pé (“o dedão”); mas ao invés desta, podem ser comprometidas outras articulações, como a dos outros dedos do pé, do dorso do pé, tornozelos, joelhos, punhos, mãos ou cotovelos. Durante a crise aguda de gota, podem ocorrer febre e calafrios, neste caso é importante uma cuidadosa avaliação para afastar uma infecção associada. A duração de uma crise aguda da gota varia de horas a poucos dias, depois o paciente fica assintomático, ou seja, sem de dor ou inchaço nas articulações.
Esta fase sem sinais e sintomas é conhecida como período intercrítico. Ela tem duração bastante variável, um segundo ataque de crise de gota pode acontecer entre seis meses ou mesmo 10 anos, mas na maioria das vezes acontece entre seis meses e dois anos após a primeira crise.
No entanto, crises agudas de gota não tratadas ou tratadas de forma inadequada tendem a favorecer novos ataques, mais graves e prolongados e a reduzir o intervalo entre eles. Desta forma, os sintomas não se resolvem completamente, pode haver o comprometimento de mais de uma articulação nas crises e instala-se a terceira fase da doença, a gota crônica.
Na fase de gota crônica, os períodos livres de sintomas desaparecem, o paciente apresenta quadro de dor contínua em mais de uma articulação, associada a outros sinais de inflamação, como edema e calor. Surgem as deformidades articulares e os tofos- aqueles nódulos formados pelo acúmulo de cristais de ácido úrico. Geralmente, os tofos são indolores, podem surgir em várias partes do corpo, porém são mais comuns debaixo da pele e próximo de articulações; eles podem limitar a mobilidade da articulação perto da qual se localizam ou ulcerar e drenar uma secreção que lembra pó de giz molhado.
Durante toda a evolução da gota, o aumento do ácido úrico no sangue (hiperuricemia) pode causar dano aos rins. A deposição crônica de urato nos rins pode levar a perda de função renal e formação de cálculos renais. Por isso, não é incomum que indivíduos com gota relatem também ser hipertensos e já terem apresentado crises de cólica renal.
Conhecendo a história da gota, fica mais fácil compreender a importância de, além de tratar a crise aguda, buscar por orientações adequadas para um melhor controle dos níveis de ácido úrico. Somente um controle metabólico adequado pode reduzir os riscos de novas crises de artrite, formação de tofos e cálculos renais e danos a função renal, mantendo uma melhor qualidade de vida.
A gota é uma doença hereditária?
Cerca de 40% dos pacientes com gota apresentam histórico familiar desta doença, o que nos permite afirmar que há uma influência genética significativa, porém outros fatores determinam a expressão da doença, sendo relevantes: a influência da dieta, o consumo de álcool, o uso de algumas medicações e a presença de outras doenças.
Diante destas observações, podemos dividir a gota em primária e secundária.
A gota primária é causada por um erro inato do metabolismo das purinas (um defeito enzimático específico presente desde o nascimento), caracterizado pela superprodução de ácido úrico e/ou por defeito na excreção renal de urato, sendo este último o tipo de alteração mais comum.
A gota secundária é aquela que surge durante o desenvolvimento de outras doenças (ex: leucemias, linfomas, drepanocitose, outras anemias hemolíticas, psoríase, hiperparatireoidismo, insuficiência renal, estados de hiperinsulinemia ou resistência a insulina), ou com o uso de alguns medicamentos (ex: diuréticos, saliciatos em doses baixas, L-dopa, pirazinamida, etambutol, quimioterápicos, ciclosporina, tracolimus) ou quando o indivíduo está exposto à dieta rica em purinas, em estado de inanição ou desidratação grave.
Nos últimos 20 anos, sabe-se que a incidência da gota duplicou em todo o mundo. Vários fatores têm sido associados ao crescimento desta doença: o aumento da expectativa de vida, as mudanças de hábito alimentar e a maior freqüência de obesidade, diabetes e hipertensão arterial.
Portanto, indivíduos com histórico familiar de gota, que apresentam doenças relacionadas com aumento da produção de ácido úrico ou que usem medicamentos associados a elevação de ácido úrico no sangue, como os citados anteriormente, apresentam maior risco de desenvolver gota. Neste caso, a adoção de melhores hábitos de vida, como uma dieta mais saudável e a prática de atividades físicas, é fundamental para um controle metabólico melhor, bem como a manutenção de peso e pressão adequados, a fim de se reduzir o risco de desenvolvimento da gota.
Estou confuso: sabia que meu ácido úrico era alto e tive uma crise de artrite no dedão do pé, o médico disse que, provavelmente, era gota, mas a dosagem de ácido úrico no sangue veio normal... Pode isso?
Para fazer o diagnóstico de gota é importante uma história e exame clínico detalhados, sendo altamente sugestivo de gota o relato de ataques agudos e recorrentes de dor, edema e calor comprometendo uma articulação, em especial se esta for a primeira metatarsofalangeana (o “dedão”do pé).
Além do quadro clínico sugestivo, são úteis exames de laboratório e de imagem para comprovar o diagnóstico.
Dentre os exames de laboratório, a dosagem de ácido úrico no sangue é útil para identificação de hiperuricemia (elevação de ácido úrico no sangue), um importante fator de risco para a gota. No entanto, na vigência de uma crise aguda é possível que a dosagem de ácido úrico no sangue esteja normal, sendo importante dosá-lo novamente após a resolução da crise aguda.
A quantificação da excreção renal de ácido úrico em urina de 24 horas é útil naqueles indivíduos mais jovens – abaixo de 25 anos – com histórico familiar de gota e naqueles com cálculos renais.
No entanto, a melhor forma de se definir o diagnóstico de gota é a identificação de cristais de monourato de sódio (ácido úrico) no líquido articular coletado da junta inflamada, devendo-se realizar esta análise sempre que for possível.
A solicitação de exames de imagem também pode ser útil na avaliação de casos de gota. Nas fases iniciais da doença, os exames de radiografia podem ser normais ou revelar somente um aumento de partes moles, ou seja, o inchaço da articulação. Com a evolução da gota, à medida que acontecem novas crises de artrite, podem surgir alterações nos exames de raio-x que são bastante sugestivas de gota, como a “lesão em saca bocado” (parece um buraco no osso) e os “tofos” (depósitos de cristais de ácido úrico que surgem próximo as articulações, como nódulos debaixo da pele, mas que podem aparecer também em outros órgãos).
Outros exames de imagem podem ser solicitados para melhor avaliação da articulação inflamada, sendo possível a identificação de alterações nos exames de ultra-som, tomografia e ressonância magnética que sugiram depósitos de cristais; estes exames são especialmente úteis para avaliar o dano presente na articulação após ataques recorrentes de gota.
Como é feito o tratamento da gota? Depois de controlada a crise, preciso continuar tomando remédio?
Os principais objetivos do tratamento da gota são: o controle da crise aguda de gota, a prevenção de novas crises, a redução dos níveis de ácido úrico, a reabsorção dos tofos ou a prevenção dos mesmos.
Na crise aguda de gota, são utilizados medicamentos para controle da dor e inflamação das articulações, aliadas a recomendações de repouso e compressas de gelo.
Após a crise aguda, são utilizados medicamentos para prevenir novas crises, enquanto outros medicamentos são iniciados para reduzir os níveis de ácido úrico. Estes medicamentos são conhecidos como hipouricemiantes, alguns destes diminuem a produção de ácido úrico e outros aumentam a excreção renal de ácido úrico. A escolha de qual será o melhor medicamento para alcançar o objetivo de redução dos níveis de ácido úrico depende de alguns fatores, como idade, função renal, presença de cálculos renais e do histórico de alergias, ou seja, a escolha deve ser individualizada, uma opção pode ser melhor para um indivíduo e não para outro.
Além de tratar as crises de gota e instituir um tratamento para controle dos níveis de ácido úrico, é fundamental que o paciente seja orientado sobre as características da doença, sua evolução, objetivos do tratamento e sobre o controle de fatores de risco e controle de doenças associadas, em especial a obesidade, hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia (aumento de colesterol e triglicérides). Medidas de incentivo para que o paciente adote mudanças de hábitos de vida mais saudáveis devem sempre ser adotadas, pois elas são fundamentais para se alcançar uma melhor qualidade de vida.